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Silêncios e Rompimentos da Mulher Negra

Jéssica Luana de Castro Marinho


Sempre fui uma criança muito silenciosa. O meu “não dizer” representou e ainda representa um grande emaranhado de questões e conflitos internos profundos. Perceber-se na falta de discurso e dizer-se em voz alta é um ato de rompimento dificultoso, que acredito que ocupa a vida de muitas mulheres negras. Nos espaços de silêncios, em algum momento, todo o “não dito” vem, se arrasta conosco e é realmente devastador como o “calado” pode sufocar profundamente, afetar seu corpo, mente e existência.


O racismo opera em cada um de nós de formas distintas em cada espaço afetivo, interno e pessoal. A ótica racista se instala e, se o cuidado não for atento, começa a falar por nós: em nossos corpos, vozes e lugares sociais. Quando finalmente, após muita investigação, fui capaz de compreender do que se tratavam meus silêncios de mulher negra, me dei ao choro. O que é algo raro e caro para um corpo compreendido socialmente como “mulher forte”, deixar vulnerabilizar é uma lida física e emocional em que ainda escolho os lugares onde vou deixar meu choro, porque aprendi muito cedo a realidade cruel do corpo submisso no Brasil racista: saber se portar. Assim, o choro ficou travado em mim.


Encontrei-me com escritoras negras capazes de dar nome a parte do silêncio instaurado em mim. Compreendo do que se trata: dou nomes ao que me calou e me digo em voz ciente de potência e do lugar de mulher negra que deve ser ouvida. Compreendo, ainda, que tentarão nos convencer do contrário a todo tempo. A ideologia racista de uma estrutura é capaz de nos impregnar tão completamente que nos separa de nós mesmos e nos isola em pensamentos que não nos pertencem, incorporados e normalizados na educação. A questão, dentre muitas, é identificar onde estão os seus espaços de silêncio e de que forma se tornaram amarras, bem como, de que modo nos afeta e o que podemos fazer nesse sentido, que é social e interno.


No ensaio “A poesia não é luxo”, Audre Lorde fala sobre como a poesia é parte essencial da vida das mulheres: “ela cria o tipo de luz sob o qual as nossas esperanças e nossos sonhos de mudança, primeiro como linguagem, depois como ideia e depois como ação mais tangível. É da poesia que nos valemos para nomear o que ainda não tem nome, e que então pode ser pensado. Os horizontes mais longos das nossas esperanças e nossos medos são pavimentados pelos nossos poemas, esculpidos nas rochas que são nossas experiências recentes”. Ainda com esse ensaio nos ensina a importância do encontro com nossa ancestralidade e de que como isso nos remete a “apreciar nossos sentimentos e lidar com fontes ocultas do nosso poder”.


Já em “A transformação do silêncio na linguagem e na ação”, o Audre Lorde conta como uma experiência de uma doença grave a fez refletir sobre sua vida e seus silêncios. Diante da iminência da morte, se deu conta de que todos os medos que carregava jamais a salvariam de um câncer. Acompanho a linguagem dessa extraordinária autora para dizer que nós, mulheres negras, nos calamos por muitos motivos: por medo “eu temia que questionar ou me manifestar de acordo com minhas crenças resultaria em dor ou morte. Mas todas somos feriadas de tantas maneiras, o tempo todo, e a dor ou se modifica ou passa. A morte, por outro lado, é o silêncio definitivo”. Audre Lorde ensina, ainda, como a transformação de silêncios em palavras é algo gradativo para que a linguagem se transforme em ação. A grande lição pessoal de transformação o silêncio em linguagem é que as palavras são poderosas e vão tomando forma fora de nós, para além de nossos imaginários amedrontados e retidos.


Pode demorar muito tempo até a construção do falar sem medo ou pode ser que algum grau de medo nos acompanhe por toda vida, mas o fato é que assim como Lorde nos diz que “fomos ensinadas a respeitar mais o medo do que nossas necessidades de linguagem e significação” precisamos achar o lugar do rompimento do silêncio e compreender que pior é não falar.

E quando, então, falamos em voz alta, não temos mais retorno.


As citações são do livro “Irmã Outsider”, de Audre Lorde. Publicado no Brasil em 2019, pela Editora Autêntica, com tradução de Stephanie Borges.


 

Jéssica Luana de Castro Marinho é servidora pública federal, bacharel em ciências sociais, atua também como coordenadora na Rede MulherAções Acre e é pesquisadora e interessada nas questões da mulher negra no Brasil.


Texto publicado originalmente em Geledés Instituto da Mulher Negra.

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