Profa. Dra. Marina Vieira de Carvalho
Prazer. Essa é a sensação que me invade ao conhecer e participar da construção da Rede de Formações para Mulheres Negras, Afro-indígenas e Indígenas do Acre, projeto contemplado pelo Programa de Aceleração do Desenvolvimento de Lideranças Femininas Negras – Marielle Franco, o qual tenho a satisfação de apresentar. Como não se encantar com a resistência de pesquisadoras que transformam sua condição de gênero, raça e classe em fonte de conhecimento/empoderamento para o enfrentamento às práticas racistas, masculinistas e eurocêntricas, tão presentes na sociedade brasileira, inclusive, nos espaços acadêmicos? Para melhor compreensão das potências desse acontecimento, escrevo um breve ensaio entrecruzando minha autodefinição (COLLINS, 2019) - eu, uma mulher negra, de origem periférica, acadêmica-militante antirracista - com minhas experiências em pesquisas na área de História.
Minha primeira conscientização (FANON, 2008; GONZALEZ, 1988) sobre as desigualdades sociais no Brasil foi em termos materialistas de classe, possibilitada por professores de Humanas no Ensino Médio, o que me levou a escolher a área das Humanidades e a abraçar o ensino e pesquisa em História como meu lugar de atuação. Na graduação, mergulhei no pensamento marxista e produzi minhas primeiras pesquisas, transformando a consciência de classe em escrita da História. Encontrei um enorme prazer nessa experiência a ponto de me entender como historiadora e a enfrentar os obstáculos necessários para continuar minha formação. Em minhas pesquisas de especialização e mestrado, problematizo o jogo de controle e resistência que atravessava (e atravessa) a vida dos(as) trabalhadores(as) informais das ruas do Rio de Janeiro. Uma escrita que revela as possibilidades epistemológicas entre a minha memória pessoal (vivências de ter tido um pai “camelô”) e a conscientização das relações de poder que normatizam a vida das pessoas excluídas do mercado formal de trabalho capitalista (CARVALHO, 2011).
No entanto, apesar de ter feito graduação, pós-graduação e mestrado em História, sentia que ainda não conseguia entender a complexidade das opressões que se apresentavam, tanto na sociedade brasileira, tanto em minha própria vida - questões que não eram faladas de forma clara, mas subentendidas e sentidas por gestos, olhares, expressões e não ditos. A partir de uma leitura crítica à racionalidade iluminista que me foi apresentada no mestrado, comecei a problematizar a relação entre poder e sexualidade, elegendo tal temática para minha tese de doutoramento. Nela, analiso a produção pornô-erótica do Rio de Janeiro no início da modernização, buscando encontrar explicações sócio-históricas para questões que me atravessavam por ser uma mulher de sexualidade nômade em uma sociedade patriarcal e heteronormativa. Entendia, desse modo, ser necessário identificar o conjunto de práticas reguladoras do corpo, da sexualidade e do gênero, o qual “constitui precisamente a genealogia do ‘corpo’ em sua singularidade, capaz de radicalizar a teoria de Foucault” (BUTLER, 2016: 230). Escrita que revela as possibilidades de criação epistemológica entre a conscientização de gênero e sexualidade e a escrita da História.
Porém, mais uma vez, sentia que algo continuava me escapando. Esse “algo” que continuava buscando para a minha autocompreensão como sujeita de meu tempo e para a escrita da História, ganhou um nome próprio chamado: Gilka Machado (1883-1980). A descoberta de sua existência transformou não só a minha tese de doutorado, mas o meu próprio entendimento sobre mim mesma, o mundo e a História. Sua presença singular nos meios das letras da Belle Époque carioca – mulher, afrodescendente, periférica e de letras eróticas – pôs em xeque os referenciais teórico-metodológicos que me foram apresentados pelos cânones das humanidades. Tal arcabouço não dava conta do entrecruzamento de opressões presentes na vida e obra de Gilka Machado e das potencialidades de suas resistências. Simultaneamente, começava a entender que esse conjunto de conhecimento também não dava conta de explicar os diferentes tipos de violências que eu - mulher, negra, periférica - experimentava de forma mais explícita ao começar a me conscientizar não apenas sobre as relações entre poder, classe e gênero, mas, especificamente, sobre as relações entre poder, raça, classe e gênero.
Foi após a minha formação acadêmica completa em História, quando tive a oportunidade de conhecer a Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (UNILAB), que encontrei pela primeira vez um conjunto de epistemologias voltadas às especificidades das sociedades do Sul-Global. Devido a singularidade de sua proposta - criada para a integração do Brasil com os países de língua portuguesa do hemisfério Sul -, a UNILAB se posiciona contra o eurocentrismo instituído nas universidades brasileiras e, por isso, pude conhecer um currículo de História decolonial. Encontro tão potente que me fez compreender que aquele incômodo/angústia que sentia durante toda a minha formação em História era, justamente, a incompatibilidade entre a problemática que atravessa a minha existência e a dos/as sujeitos/as que eram privilegiados/as pelas minhas pesquisas (pessoas subalternizadas das periferias do Sul-Global) e as tentativas de compreendê-los/as pelo arcabouço teórico-metodológico que me foi apresentado pelos cânones das ciências humanas que é, fundamentalmente, eurocêntrico.
A tradição do pensamento Ocidental, que camufla seu eurocentrismo por sua suposta neutralidade universalista, me fazia não entender os graus de colonialidade (QUIJANO, 2008) que atravessavam as nossas vidas – a minha e das pessoas subalternizadas que eu pesquisava, principalmente, a das mulheres de cor (LUGONES, 2008). Tal incompatibilidade, entre a epistemologia Ocidental e as especificidades das sociedades colonizadas, se expressa, por exemplo, no silenciamento de categorias de análises específicas ao padrão de poder que estrutura as desigualdades de nosso solo histórico, o qual tem como pedra angular de classificação e organização social a divisão racial da espécie humana. Isto é, a principal diferença que funda sociedades como a brasileira não é entre quem tem ou não tem propriedade e sim entre quem é considerado plenamente humano e aqueles “menos” humanos – falo da humanidade subalternizada das populações indígenas, negras e a das diferentes mestiçagens que formam as sociedades colonizadas, em suma, o conjunto das populações do Sul-Global que são, por definição sócio-histórica, diferentes das populações pertencentes ao Norte-Global. Nessa escala entre maiores e menores níveis de humanização, as opressões de gênero e de classe entre pessoas pertencentes ao mesmo Estado Nação, sempre aparecem combinadas às raciais.
O que desejo afirmar neste ensaio é que se quisermos criar um pensamento original e relevante, principalmente, para as sociedades do Sul-Global que o Brasil integra, precisamos, com urgência, descer do salto da chamada “civilização europeia” e pisar na complexidade do nosso solo colonial. Iluminar não só a modernidade, mas também a colonialidade que segue entrecruzada a primeira, porém obscurecida pelo padrão de poder que a invisibiliza, inclusive, dentro da academia. Já passou da hora de nos desapegarmos da lógica contida na clássica frase oitocentista: “Brasil: com os olhos na Europa e os pés na América”. Ao abandoná-la, a primeira constatação que nós, pesquisadores(as) das ciências humanas nos deparamos, é a de que não pisamos no mesmo chão histórico que, por exemplo, o dos(as) franceses(as) e que, por isso mesmo, precisamos decolonizar nossas práxis. O que nos abre um mundo de transformações e possibilidades epistemológicas a construir.
E por que tecer todos esses fios entre epistemologias e processos de autodefinição para apresentar a Rede de Formações para Mulheres Negras, Afro-indígenas e Indígenas do Acre? Porque alinhavar problemática social, diversos níveis de conscientização (de classe, de gênero, de sexualidade e de raça) dos(as) sujeitos(as) subalternos(as) e suas possibilidades de construções epistemológicas é uma forma de evidenciar a urgência de se combater o eurocentrismo das ciências humanas; de denunciar a gravidade das consequências do epistemicídio (SANTOS, 2009) praticado nas universidades brasileiras, ao qual a Rede em questão atua para sua transformação por ser: "uma organização pensada por três mulheres negras pesquisadoras do Núcleo de Estudos Afro-brasileiros e Indígenas da Universidade Federal do Acre - Neabi/Ufac, com o propósito de corroborar nos processos de empoderamento coletivo e representatividades de mulheres negras, indígenas e afroindígenas nos ingressos em cursos de pós-graduação Stricto-Sensu e em concursos públicos. (Carta de apresentação da Rede)".
Ao analisar a complexidade da sociedade brasileira, já empoderada com as ferramentas da epistemologia decolonial e dos feminismos negros, identifico uma possibilidade de re-existência que nomeio em minhas pesquisas de feminino vivificante (CARVALHO, 2018, 2020a, 2020b) - uma potência de desestabilização à ordem colonialista imposta; um erotismo de vida feminino que revitaliza existências mortificadas pelo capitalismo racista e patriarcal. Diante do exposto, identifico na Rede de Formações para mulheres negras, afro-indígenas e indígenas do Acre a presença desse feminino vivificante. Dessa forma, o prazer desse encontro se desdobra em parceria ao me tornar uma das professoras madrinhas, estendendo também essa possibilidade de prazer a possíveis professoras-pesquisadoras engajadas na produção de conhecimento de combate ao racismo e ao patriarcado, com atuação no campo acadêmico, epistemológico, intelectual e militante.
Enfim, se você é uma professora-pesquisadora que luta pelo fim do racismo, do patriarcado e da heteronormatividade, essa é uma excelente oportunidade de atuação. Participe da construção e da propagação desse feminino vivificante pelas universidades brasileiras se tornando uma das madrinhas da Rede de Formações para mulheres negras, afro-indígenas e indígenas do Acre.
Marina Vieira de Carvalho é acadêmica-militante antirracista, feminista decolonial, doutora em História pela UERJ, professora do Departamento de História da UFAC.
Texto originalmente publicado em Humanitas Rede
Referências
BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. 11ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016.
CARVALHO, Marina Vieira de. Equilibrando a Vida: os enunciados sobre os malabaristas da subsistência do pós-abolição carioca. Dissertação (Mestrado), Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. Rio de Janeiro, 2011. Disponível em: http://www.bdtd.uerj.br/tde_busca/arquivo.php?codArquivo=4328. Acesso em: 30. jun. 2020.
CARVALHO, Marina Vieira de. Leituras do Prazer: a criação pornô-erótica na alvorada da modernidade carioca. Tese (Doutorado), Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. Rio de Janeiro, 2018.
FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Tradução: Renato da Silveira. Salvador: EDUFBA, 2008.
COLLINS, Patricia Hill. O pensamento feminista negro: conhecimento, consciência e a política do empoderamento. São Paulo, Boitempo, 2019.
GONZALEZ, Lélia. A categoria político-cultural de amefricanidade. Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro, n. 92/93, 1988.
LUGONES, María. Colonialidad y género. Tabula Rasa. Bogotá, No.9,2008, p. 73-101.
QUIJANO, Aníbal. Colonialidade e modernidade/racionalidade. Tradução: Wanderson Flor do Nascimento. In: BONILLO, Heraclio (Comp.). Los conquistados. Bogotá: Tercer Mundo; FLACSO.
SANTOS, Boaventura de Sousa; MENESES, Maria Paula (orgs.). Epistemologias do Sul. Coimbra: Almedina, 2009.
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